10.05.2006

Meia dose

Parece mentira, parece piada, mas é com meia dose de tristeza e meia dose de escárnio que vos chamo a atenção para esta auto-intitulada “boa meia-dose”.

Quase ao nível de Paula Bobone quando do alto da sua tiara exclamava que ser sem-abrigo era uma opção de vida, Maria José Nogueira Pinto afirma em entrevista ao semanário Sol de passado dia 30 de Setembro as seguintes pérolas:
“As pessoas que trabalham comigo sabem que, nos momentos de grande crise, quando é preciso reflectir e tomar decisões, vou para a Zara.”
“Ainda noutro dia, em Amesterdão, comprei uma carteira de avestruz por dez euros.”
“ (…) Sempre achei que as mulheres não deviam ser desmazeladas. Uma mulher desmazelada não serve para nada.” – Ao que pergunta José Fialho Gouveia (cuja expressão facial, confesso, gostaria de ter observado, bem como as suas nuances ao longo da entrevista): “O que é uma mulher desmazelada?” Meia-dose…, perdão…, a Dr.ª Maria José Nogueira Pinto, responde: “É uma mulher que não se trata, que não se penteia, que não se pinta um bocadinho, que não tem um berloque, uma roupinha da Zara. Hoje, as mulheres desmazeladas não têm desculpa. Não as imagino a tomar conta de nada. Os filhos também andam desmazelados, a casa deve ser um caos, não deve haver jantar. Ter uma mãe desmazelada deve ser traumático. Lembro-me de amigas minhas que sofriam muito. Uma mulher desmazelada acaba por desmazelar tudo à sua volta.” “E uma mulher pindérica é o quê?” “É desmazelada. Cabelos sujos, coisas assim, não está a ver?”

Ver para crer: aqui.

Longe de mim criticar as tias, dondocas, betinhas deste mundo. Que muitas queques são certamente muito boa gente, inteligentes e valiosas para a sociedade. E outras serão fúteis, ocas, vazias, pretensiosas e artificiais. Discriminar pela etiqueta da roupa é uma discriminação feia como outras.
Não posso, porém, deixar de soltar algumas dúvidas e exclamações a propósito da inquietação que esta entrevista me suscitou.

Não sei se algum leitor distraído pensou estar perante uma campanha publicitária agressiva da Zara, estampada que estava a foto em pose elegante, repetido que era o nome. Público-alvo: mulheres decisoras que, não encontrando amparo em assessores, livros, reflexões sobre a realidade em que se inserem, entram na capital da fast-fashion e aí sim a inspiração lhes assiste, quiçá sob a forma de estola de lantejoulas cosidas à mão por miúdas indianas de 12 anos que trabalham 14 horas por dia sem luz suficiente para alimentar as bocas de pais e irmãos enfermos; donas-de-casa de classe média-alta, muito prendadas que, depois de cumprirem o seu dever doméstico que garanta jantar na mesa (entenda-se, deixar a ementa escrita de forma a que a doméstica ucraniana decifre o que os patrões querem que ela cozinhe), têm de ocupar o tempo que lhes sobra antes da marcação para a manicura e a aula de step e a seguir aos 20 minutos semanais de solário; e ainda, e sobretudo, as desmazeladas-despenteadas-sem berloques, que afinal também têm algum direito de serem reconhecidas como gente de bem (obviamente não o serão sem que naquele cabelo surjam umas madeixas bem desenhadas a louro-dourado com cerca de €40, sem que os pés gretados se disfarcem numa sandalocha de missangas coloridas com o salto da moda de €35 e, muito menos, sem a toilette apropriada que, forçosamente, tem de incluir detalhes dourados ou prateados – bastam umas letrinhas na frente da t-shirt de €15).
Peço desculpa pelo abuso de estereótipos e sarcasmo a bem da tolerância humorística (se não me risse teria de chorar); está-me no sangue que não é nada azul… Não sei se está a ver…
É realmente possível que pessoas com cargos políticos de destaque estejam alheados da realidade de tal modo que não lhes cruze o pensamento que há famílias inteiras a viver mensalmente com quantias que não chegam sequer para comprar um tailleur na Zara?! Desmazelo, Dr.ª Maria José Nogueira Pinto, é ter a cabeça despenteada por dentro. Poupar em cabeleireira e nos berloques para dar aos filhos mais algum pão e agasalhos é o que de mais chique uma Mulher pode fazer. Porque a real pobreza é a de espírito.


Nota Editorial: Post escrito integralmente enquanto a Dona do Blog enverga T-shirt patrocinada por marca de telemóveis, branca e já muito usada, que não combina com calças de pijama seguramente com mais de 10 anos, em tons pastel. Os pés estão nus e sobre as pernas, a cara sem vestígio de maquilhagem. Berloques: zero. A Dona do Blog não tem orelhas furadas, detesta colares e pulseirinhas e tem um ódio vincado por todos os objectos de ouro, dourados e afins. A Dona do Blog só vai à cabeleireira quando estritamente necessário e ainda assim, apenas para “lavar e cortar”; hoje o cabelo está solto e sem penteado definido. A Dona do Blog orgulha-se de não possuir calçado que custasse mais de €25 e essa foi uma ocasião excepcional em que um par de ténis verdes fabulosos lhe foi oferecido, há talvez seis anos (ainda os calcei a semana passada). A Dona do Blog não é fufa. Será a Dona do Blog uma desmazelada que só se deu ao trabalho de escrever esta crónica por despeito?


Segunda Nota Editorial: A Dona do Blog faz esfoliações à pele de cara e corpo, faz a depilação frequente em todos os sítios indispensáveis. A Dona do Blog é incapaz de pôr a cabeça de fora da janela sem antes ter tomado o seu banho diário, troca a roupa interior diariamente, jamais esquece o cuidado anti-olheiras. Os dentes são lavados religiosamente, pelo menos três vezes ao dia, esquecer o batom hidratante é um factor de stress. O cabelo não dispensa uma lavagem por dia, 2 minutos de amaciador e o tratamento para pontas. Jamais alguém poderá dizer que viu uma unha suja nestas mãos (nota-se que não trabalho com a enxada). A Dona do Blog ainda não foi a Amsterdão mas já viu carteiras de Avestruz a €5 na Ramona das Malas, Feira do Feijó. A Dona do Blog compra na Zara e na H&M, na época dos saldos, na loja do chinês, na feira e na La Redoute. Sem cheta, mas lavadinha.




 

2 comentários:

paibabado disse...

Ahahahah!
Fantástico.
Obrigado pela visita.
Adorei vir aqui rir-me um bocado.

Anónimo disse...

Olá é a 1ª x que visito o teu blog.
e só tenho uma coisa a dizer... tenho muita pena que a a dita senhora da mala de avestruz (quiçá feita da sua própria pele, pois ao q parece esta senhora deve ter cerebro de avestruz) não tome conhecimento deste texto. é realmente uma pena que no mundo politico português existam pessoas como ela.
Parabens pelo texto. Vou passar a "visitar-te" regularmente.